Texto de Samuel C. de Pontes
Escolhas: quando as ideias tomam forma e viram prática
As possibilidades práticas, descritas nos itens a seguir, provêm da ideia de diversos pensadores do campo da Educação Musical. No entanto, é preciso enfatizar, não se trata da aplicação de um método ou de parte de um método e, sim, de ideias que guiaram essas escolhas e, consequentemente, a criação das propostas. No que diz respeito a essas descrições, cita-se, aqui, o pensamento de Boris Porena, sobretudo as propostas presentes em KinderMusik (PORENA, 1973) e Musica-Prima (PORENA, 2017), que é tema da minha pesquisa de doutorado — em andamento —, bem como a filosofia Suzuki, que esteve em análise no meu mestrado e resultou a Dissertação, que termina com um tom ensaístico e tem como título “Diversas Lentes de Leitura do Método Suzuki: diálogos e outras experiências literárias” (PONTES, 2017).
Jogos: imitação, criação e estruturas
Como já considerado nos itens anteriores, a experiência aqui relatada é de natureza experimental e, como tal, utiliza-se de diversos procedimentos metodológicos que têm relação com o jogo, com a improvisação e, também, com a composição, em sentido amplo. Salienta-se, ainda, que esses procedimentos, nesse caso, estão relacionados com a ideia de estabelecer coleções de notas específicas, presente em Musica Prima (PORENA, 2017, p.129 a 227) e, também, em algumas propostas de Kindermusik (PORENA, 1973). O quadro a seguir traz algumas dessas coleções utilizadas. Elas foram escolhidas por ordem de complexidade, esta é a razão pela qual, a primeira delas é composta apenas de cordas soltas.
Quadro 1: Possíveis coleções de notas
Descrição da coleção de notas | Notas |
Cordas soltas | G – D – A – E |
Cordas soltas e primeiro dedo (cordas A e E) | A: lá – si; E: mi – fá # |
Cordas soltas, dedos 1 e 3, cordas A e E: escala pentatônica | A: lá – si – ré; E: mi – fa# – lá |
Cordas soltas, dedos 1, 2 # e 3, corda A | A: lá – si – dó# – ré |
Cordas soltas, dedos 1, 2♮ e 3, corda A | A: lá – si – dó – ré |
Considera-se, ainda, que não se trata de uma ordem a ser seguida, tanto no que se refere ao estudo de cada uma das coleções como no que diz respeito à organização de notas internamente e, sim, de possibilidades que se alternam — ainda hoje, na maioria das vezes, começamos com as cordas soltas e, só depois, escolhemos outras possibilidades de alturas. Além disso, algumas dessas coleções foram construídas com base nas cordas que são mais fáceis de tirar som no violino — A e E — apesar disso, não se exclui a possibilidade de transpor essas configurações de dedos da mão esquerda, ainda na primeira posição (ou em outras, no futuro), para as outras cordas.
Salienta-se, também, que se pretende incluir coleções novas, em que o ruído — percutir o instrumento, raspar as cordas depois do cavalete etc — e os glissandos — em várias direções — façam parte das possibilidades de escolha, este procedimento já está previsto no referencial citado. Além disso, com o tempo, pretende-se incluir novos mecanismos de criação de sequência de sons com essas coleções, tais como o ordenamento de cartas — cada uma com uma “unidade” da coleção e/ou fragmento melódico, em sentido amplo — e o jogo de dados.
Eu toco quatro notas, você imita; mas, pera aí, ainda não acabou, agora quem toca primeiro é você
Esse modo de atuar foi um dos primeiros estabelecidos, mesmo antes de tocar as notas, no processo de entendimento do lugar mais adequado e confortável para usar o violino e do controle inicial do arco: comecei mostrando/tocando algumas coisas — movimentos da mão direita, formas de segurar o arco, cordas soltas, algumas notas já com a mão esquerda, etc — e pedi, simplesmente, que ela imitasse o que eu fazia. Depois que isso já estava estabelecido, trocamos de papel: “quem escolhe agora é você”: “quais são as possibilidades de movimento para a mão direita?”; “e para o braço direito?”. Depois de explorar essas possibilidades de movimento, o mesmo procedimento foi repetido para as cordas soltas: toquei quatro notas e pedi que ela repetisse, toquei outras quatro e fizemos a mesma coisa, depois, quem tocava primeiro era ela. O número de notas também variava a cada vez.
Eu toco, você toca igual e, depois, acrescenta sua parte; quando chegar minha vez, eu imito a sua e toco outra coisa e assim a vida segue
Esse item é derivado do anterior, a figura a seguir traz um exemplo dessa dinâmica, que se aproxima do diálogo.

Veja-se que o segundo compasso, da pauta de baixo é exatamente igual ao primeiro da de cima. Os compassos 3 e 4 seguem a mesma lógica, mas, dessa vez, quem propõe algo é o outro violinista.
A partir da leitura dessa figura, entende-se que algumas observações fazem-se necessárias: (1) a figura mostra, apenas, um exemplo; a lógica sugerida é que essas sequências sejam criadas diretamente no instrumento, na hora, e não dependam, em um primeiro momento, de leitura e escrita; (2) o mesmo pode ser feito com outros tipos de compasso — ternário ou binário, por exemplo; (3) é possível estabelecer um ostinato rítmico diferente das quatro semínimas apresentadas no exemplo; (4) como descrito anteriormente, essa mesma lógica pode ser aplicada com o uso de outras coleções de notas — em sentido amplo, o que pode incluir, como já visto, sons sem altura definida.
“E se a gente arrumar, de um jeito diferente, as notas da música, para fazer uma nova seção?”
Outro procedimento utilizado, que tem a ver com a temática deste item, diz respeito à possibilidade de ordenar, de maneira diferente, as notas de uma música já conhecida. Nesse caso, a “coleção de sons” disponível corresponde às notas dessa música. É possível, ainda, estabelecer algumas regras para esse novo ordenamento, de maneira que a estrutura harmônica, se for o caso, seja mantida ou evitada, a depender da escolha do momento. Destaca-se, também, que essa nova sequência pode ser tocada como uma seção para a música que já existe, isto é, não se exclui a possibilidade de manter a música do jeito que está em algum momento da execução.
Um Suzuki meio diferente: será que a Madama Dorè e o Spot da Barilla combinam com as Estrelinhas?
Quem conhece o mundo dos métodos de ensino de violino certamente vai lembrar que a primeira peça que Suzuki propõe no primeiro volume das partituras para violino é Brilha, Brilha Estrelinha (SUZUKI, 2007), que, ainda hoje, está em nossos ouvidos, isto é, trata-se de uma música que quase todo mundo conhece. Esta escolha está relacionada com uma das ideias centrais do autor, uma vez que Suzuki propõe um paralelo entre o modo de aprender música — da forma como ele apresenta — e o processo de aquisição da língua materna (PONTES, 2017, p. 67 e 68). Assim, outro pilar dessa experiência relatada diz respeito à pesquisa de repertório, ou seja, a identificação de músicas simples, para começar, que já estavam nos ouvidos da estudante.
Por que a Madama Dorè e o Spot da Barilla ?
A finalização do item anterior já responde ao questionamento apresentado aqui, essas duas músicas apareceram em nossas aulas de italiano e, depois de conversarmos, percebi que já estavam presentes no universo sonoro de Francesca há muito tempo. Além disso, elas foram escolhidas em conjunto, não foram impostas por mim depois dessa conversa. As figuras a seguir trazem a partitura de cada uma delas:


Segue-se, então, algumas observações a respeito dessas escolhas e, também, de como essa experiência foi desenvolvida: (1) escolheu-se a armadura de clave com três sustenidos e a região das cordas A e E por conta das particularidades do violino; mesma tonalidade e região das primeiras peças propostas por Suzuki; (2) as peças foram aprendidas de ouvido e por imitação, sem o uso da partitura em um primeiro momento; (3) em alguns momentos, motivos rítmicos e melódicos dessas peças foram utilizados para improvisações, aos moldes dos procedimentos descritos no item 2.1.
Estrelinhas com notas trocadas e, também, em modo menor
Em paralelo com a aprendizagem das músicas do item anterior, aprendemos, também, a famosa Brilha, Brilha Estrelinha, já que esta peça tem sido a primeira para muitos estudantes de violino. No entanto, como já é possível perceber a esta altura do texto, a peça foi utilizada como ponto de partida para os nossos experimentos: inclusão de uma nova seção com as notas trocadas e/ou com outras notas da mesma escala; troca do dó #, na segunda parte, por dó♮, para que essa seção fosse tocada em tonalidade menor; modificações do ritmo, realização de cânone etc.
Um convite a novos caminhos para a interação com o instrumento
Para terminar, não posso fazer uma conclusão aos moldes tradicionais porque o trabalho ainda não foi concluído. Apesar disso, gostaria de dizer que espero que este relato tenha servido para mostrar que as possibilidades para as aulas de instrumento são infinitas e para estimular a criatividade do leitor na criação de novos jogos, novas dinâmicas para as aulas, novas coleções de sons possíveis e, talvez o mais importante, novas possibilidades de diálogo e troca. Peço, por favor, que não tome essa narração como uma “receita de bolo” e, sim, que faça, a você mesmo, algumas das perguntas a seguir: quais as possibilidades de sons que posso tirar do meu instrumento? Quais as notas mais fáceis de tocar? Que tipo de coleção de sons posso criar? De que maneira posso utilizar as notas de uma música que já existe para fazer outra ou para compor uma nova seção dela mesma? Quais músicas fazem parte do imaginário sonoro de meus estudantes? Que tipo de adaptações são necessárias para que eles possam aprendê-las?
Referências
DELEUZE, Gille e GUATTARI, Felix. Mil Platôs No.3. São Paulo: Editora 34, 2012
PONTES, Samuel Campos de. Diversas Lentes de Leitura do Método Suzuki: diálogos e outras experiências literárias. Dissertação de Mestrado. Instituto de Artes da Unesp – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.
PORENA, Boris. KinderMusik. Edizioni Suvini. Milão:1973
_____________. Musica Prima. In. Porena. B. Le Indagini Metaculturale. vol 2, livro 6. Famiglia Porena-Bucan. IIMM, Cantalupo: Itália. 2017
SUZUKI, Shinichi. Suzuki Violin School – Violin Part Volume I. Revised Edition: Florida: Summy-Birchard, 2007

Samuel Campos de Pontes
Samuel Campos de Pontes é Mestre em Música pela Unesp (2017). Licenciado em Artes: Música pela Unicamp (2014). Formado em violino pelo Conservatório de Tatuí (2013). Atualmente desenvolve pesquisa de Doutorado a respeito da obra do compositor e educador musical italiano Boris Porena no Instituto de Artes da Unesp, área de Educação Musical, sob orientação da Profa. Dra. Marisa Fonterrada. É integrante do G-pem – Grupo de Pesquisa em Educação Musical. Atua como professor de música no Colégio Etapa-SP (Ensino Fundamental 1)
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