Liberdade para compor

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Desde muito cedo, quando ainda nos estudos iniciais de instrumentos, eu já sabia que meu maior desejo no campo da música era ser compositor.

No entanto, quando apresentava esta ideia para os professores de conservatório, uma das respostas que recebia era que eu não sabia o que eu estava dizendo e que, para ser um compositor teria que, primeiro, me tornar um virtuose em um instrumento para, somente depois me arriscar na escrita. Havia, ainda, respostas mais ríspidas e humilhantes, cujo teor principal resvalava na reprodução do mito do gênio, por meio do qual esses professores tentavam me incutir a ideia de que somente alguns poucos privilegiados poderiam se alçar a essa categoria considerada por eles tão distinta, à qual eu, certamente, não estava destinado, pois se estivesse, já deveria ter apresentado alguns sinais de superioridade desde cedo, os quais eles não enxergavam em mim.

Para não ser injusto, devo referir que apenas o meu professor de clarinete me incentivou, chegando mesmo, com enorme generosidade e ponderação em termos de comentários, a tocar comigo alguns dos primeiros e rústicos duetos que, timidamente, apresentei a ele.

Com exceção desse professor, muitos foram os avisos de que eu deveria abandonar essa ideia e me concentrar nos estudos do instrumento ao qual eles me ministravam aulas. Aliás, em alguns casos fui, inclusive, advertido para abandonar a música e fazer outra coisa, pois não enxergavam em mim talento à altura do necessário para a arte e consideravam que eu estava desperdiçando o meu tempo e o deles. Outros, ainda, me consideravam “velho” para estudar música, pois tinha iniciado os estudos já no fim da adolescência, condição esta que, segundo eles, era inaceitável.

Diante de tantas repreensões, resolvi me silenciar quanto às minhas intenções e prossegui meus estudos. Passei por alguns instrumentos e, em todos eles, fingia que estava estudando com afinco para, um dia, me tornar um concertista ou algo parecido, já que este era o objetivo que os professores desejavam para os alunos e que, como tradição bem estabelecida, era o único objetivo que os alunos, também, deveriam aspirar. Porém, em silêncio, construí minha trajetória de acordo com os interesses que a maioria deles não aprovava e, não obstante, adquiri de cada um deles a competência necessária para o que realmente me interessava: conhecer os instrumentos para futuramente poder escrever bem para eles.

Para minha surpresa, anos depois, cursando uma graduação em composição, constatei que muitos bons ou mesmo excelentes instrumentistas tinham desejo de ser compositores, mas não conseguiam colocar nada no papel e tinham igual dificuldade em improvisar em seus instrumentos. Tal constatação confirmou a intuição que eu alimentara por anos, guardando-a em segredo diante da repressão que sofrera por parte dos professores e autoridades musicais às quais tinha, em vão, consultado: o impulso de criar é uma característica que não está diretamente relacionada à prática de instrumentos de acordo com a maneira tradicionalmente ensinada de acordo com o modelo de música europeu que ainda domina o universo dos conservatórios.

Ainda que o aprendizado de um ou mais instrumentos seja uma matéria prima essencial e inseparável da formação de um compositor, por outro lado, o modelo tradicional do ensino conservatorial não abre espaço para o desenvolvimento da criatividade. Pelo contrário, esse modelo transformou a criatividade em um artigo de luxo, atrofiando, castrando ou impedindo o seu desenvolvimento na imensa maioria dos músicos que se formam segundo esse molde.

Nessa tradição a criatividade é tratada como algo fora do comum, que não pode ser ensinado. Edificou-se em torno dessa habilidade, tão valorosa e intrínseca ao ser humano, um tabu. Considera-se que ela não pode ser cultivada e desenvolvida e sua manifestação ocorre apenas em alguns privilegiados.

Essa é uma crença que causa espanto, principalmente porque ainda é recorrente em uma civilização como a nossa, pautada na ciência e na ideia de progresso, de índole laica e que, surpreendentemente, trata um tema de tão grande importância como este como se fosse uma característica sobrenatural, ou seja, um “dom concedido pelos deuses”.

Mesmo que concluíssemos que a criatividade não pode ser ensinada, ainda assim não poderíamos deixar de notar que ela pode ser estimulada.

A criatividade não é uma qualidade fora do comum. Ela é uma característica que todos os seres humanos podem desenvolver. Basta estimulá-la. A razão, fundamento tão valorizado no mundo ocidental, não é diferente. Ninguém nasce com o uso pleno da faculdade da razão desenvolvido. Nós a desenvolvemos ao longo da vida, por via do estímulo.

O grande empecilho para o desenvolvimento da criatividade na música erudita ocidental é a falta de estímulo. Em um meio tão rígido como esse, realmente é difícil desenvolver uma característica que tem na liberdade a sua principal ferramenta. A música, por si só, é polissêmica, ou seja, apresenta vários significados possíveis, como acontece com qualquer tipo de arte. Essa polissemia precisa ser desenvolvida nos mais diversos aspectos do ensino e aprendizagem de música. O sistema de ensino baseado na reprodução de modelos rígidos e pautado na repetição e no adestramento precisa ser superado, de forma a abrir caminho para um novo ensino e aprendizagem de música, mais focado na criatividade e na realização pessoal do músico. O antiquado modelo europeu, assemelhado ao princípio fordista de produção fabril, não responde ao modo de vida que levamos atualmente.

A ideia de que somente os “gênios” podem criar é insustentável quando fazemos comparação com outros sistemas de música. Basta olhar para os músicos de jazz, que são estimulados desde o início de sua formação a improvisarem. O resultado é o que tão bem sabemos: a criação espontânea que esses músicos realizam em cada uma de suas apresentações. Veja-se, também, a música clássica indiana (Hindustani), na qual a improvisação é parte inseparável de seu repertório e é constitutiva da formação. De maneira oposta, a maior parte dos músicos de orquestras especializadas no repertório erudito ocidental não desenvolve essa habilidade.

Em uma cultura musical como esta, fortemente repressiva quanto à criatividade, os compositores acabam sendo cultuados como “seres divinos”, que realizam proezas fora do comum da realidade da imensa maioria dos mortais. São tidos como seres tocados pelas graças das musas, que não aprendem, pois já vêm com esse “dom” desde o nascimento.

Caberia observar exemplos das vidas de alguns compositores para verificarmos quais as reais condições que os levaram a se tornarem criadores de música. No entanto, esse não é o objetivo aqui. Pode ser que alguns entre os indivíduos que conseguem se tornar criadores no seio de uma cultura castradora como essa realmente tenham alguma habilidade especial, haja vista que conseguem romper o cerco. Porém, ainda assim, isso não faria da criatividade algo que não pode ser ensinado ou estimulado. Como qualquer outra habilidade, ela também pode ser desenvolvida por alguém que não a aprendeu instintivamente e o ponto de partida para isso se encontra na valorização da liberdade.

A liberdade para criar deve ser estimulada desde os primórdios do contato da pessoa com a música. Ela deve ser incluída como elemento do ensino e aprendizagem. Desta forma a criatividade deixará de ser entendida como algo extraordinário e passará a ser incluída no conjunto das características tidas como “naturais” da prática musical.

Felizmente, as sugestões apontadas neste texto já não são tidas como um desejo inalcançável. O campo da educação musical nos oferece, há algum tempo, um grande exemplo de como essa tendência pode ser revertida, manifesto no trabalho dos educadores voltados para as práticas criativas.

Nossas sociedades ocidentais padecem, ainda, do sério problema da extrema atomização das relações entre as pessoas, que se manifesta na valorização da competição em detrimento da cooperação. Pode ser que o campo da música, ao dar o passo para uma maior valorização da criatividade, com a proliferação de pessoas que se sentem livres para se expressarem como compositores e/ou improvisadores, ao invés da acirrada disputa entre os relativamente poucos que existem, possa oferecer um exemplo significativo para as demais áreas de como se pode superar esse individualismo extremo, caracterizado pela proeminência de alguns sobre muitos.

Compositor e professor de música. Possui graduação em Composição e Regência, graduação em Saúde Pública, pós-graduação lato sensu em Ciências Sociais. Atualmente cursa o doutorado no Instituto de Artes da UNESP, sob orientação da profa. Dra. Marisa Trench de Oliveira Fonterrada, cujo tema de pesquisa versa sobre o excesso de ruídos na contemporaneidade, investigado a partir do olhar da ecologia sonora, de Schafer, e do pensamento sistêmico, de Fritjof Capra.

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